Sábado do Carnaval de 2004, começo da tarde no
Centro de João Pessoa. Eu estava na loja de CDs em que trabalhava,aguardando
chegar às 15h para voltar pra casa e pensar no que fazer em meio a folia
que já predominava em toda parte. Já era umas duas e pouco da tarde e, comigo
na loja, apenas um amigo de longa data, Thiago Mendes, que fazia Biologia na
UFPB e, geralmente, aparecia aos sábados para conversar, sair pra beber vinho ou
cerveja e – de vez em quando –, comprar algum produto da loja. Quando adentrou
a loja nosso amigo de poucos meses e já enturmado com quase todos os
frequentadores, o veterano metaleiro baiano Jurubeba (Wuldemberg Jr., seu
verdadeiro nome) bem apreensivo, com uma mochila e uma bolsa de viagem e que
foi logo intimando:
– Tenho que viajar daqui a pouco para
‘Hellcife’ e encontrar a ‘baianada maluca’ la´de Feira (de Santana, sua cidade
natal), que foi toda para o Carnaval de Rua que rola no Centro de Lá! Vamos lá,
véio, me deixar na Rodoviária? – ele falou para nós dois. – Desmonte o ‘cacete
armado’ que gente toma umas ‘cebrejas’ no caminho... – emendou, já se
justificando e caprichando no ‘baianês’.
– Mas ainda não são 15:00 hs
e estou sozinho na loja hoje! – expliquei com uma certa falta de interesse em
sua farra. Até porque, tinha recém-acabado um namoro, não tinha planos (leia-se
grana mesmo) e tenho pavor as festividades ligadas ao Rei Momo e Cia.
– É sábado de Carnaval,
maluco! Ninguém mais vai aparecer por aqui. Bote fé! – ele de novo insistindo.
– Pode fechar a birosca, dê um ‘zignau’ no trampo do Emerson (um dos donos) que
a gente se ‘adverte’! Vá lá, dê uma providência que a hora tá correndo, meu
veio! – voltando a falar e me perturbando.
– É mesmo, Jailson! Fecha a
loja que a gente deixa ele na Rodoviária e toma umas latinhas pra ficar no
grau! – era o Thiago, sem uma arruela furada no bolso e concordando com o
cabeludo e tatuado amigo, companheiro de vários shows de heavy metal e outras
curtições que já tinham participado. Além de também possuir raízes ligadas a
terra dos orixás.
A loja ficava nos arredores da Praça Dom
Adauto (Praça do Bispo), eu entrei em acordo, passei a chave na loja e nós três
saímos pela Av. Visconde de Pelotas, Ponto dos Cem Réis, Viaduto Damásio Franca
e Rua do Comércio; sempre no sentido contrário aos carros e tomando umas latas
de cerveja para aliviar o calor e ficar no clima da folia que tomava conta do
país.
Ele havia comprado a passagem das três horas no
dia anterior. Porém, por causa de sua vagarosidade - e do cacoete de parar
segurando em nosso braço pra enfatizar algum ‘causo’ de seu longo histórico de
quase quatro décadas (na época) de presepadas –, chegamos depois da hora
marcada e ele teve que trocar o bilhete pelo o das quatro horas da tarde.
Sentamos no piso inferior quase em frente ao portão de embarque, continuando a
beber e conversar abobrinha para passar o tempo.
Enquanto falava sobre a
alegria de rever cada um dos amigos headbangers após vários anos sem pisar em
sua terra natal, e do caos que é a capital pernambucana nessa época do ano; ele
abriu um bolso lateral da mala e retirou vários fascículos de uma série chamada
“Os Pensadores”, que seu pai havia comprado durante os anos 70. Eram umas
revistas pequenas e bem finas e com títulos dedicados as grandes mentes que
popularizaram o Conhecimento em escala global: Platão, Voltaire, Oscar Wilde,
Vitor Hugo, Rousseau, Einstein, Nietzsche, Marx e alguns outros ilustres. O
melhor ainda estava para acontecer...
Estávamos distraídos vendo
sua coleção, levada exclusivamente por causa da viagem (lembrando que na época
não havia Facebook, Twitter, WhatsApp, celulares com muitos recursos para se
distrair, e ele sempre foi um cara inquieto, principalmente quando havia
bebido) e ouvindo mais algumas de suas mirabolantes histórias, quando se
aproximou um sujeito de uns trinta e poucos anos, vestido de forma composta,
moreno e bem magro. Com uma Bíblia embaixo do braço e uma porção de ‘santinhos’
da Assembléia de Deus – se não falha minha memória –, distribuindo e falando
algumas mensagens relacionadas a sua fé entre as pessoas presentes na estação.
Quando chegou nossa vez, eu era o primeiro e o Jurubeba o último no banco do
saguão.
– Meus irmãos, ‘aceite’ aqui
a palavra do Senhor, pra que vocês ‘possa refretir’ nesse período de provação,
de trevas por todo canto, sem o amor do Sr. Jesus e etc e tal... – falava o
crente enquanto passava o santinho para mim e, em seguida, na mão do Thiago – que
pegamos meio a contragosto, mas não falamos nada.
Ao chegar à vez do ‘mau’
baiano (que sempre falou que era ateu e odiava pregação de crente, e também pra
manter seu status de ‘banger’ autêntico), ele não aceitou o folheto e foi logo
questionando o conhecimento do crente:
– Venha cá, meu rei, você já leu isso aqui? E
esse aqui? E esse outro? – passando um a um os volumes da série e aborrecendo
cada vez mais o evangélico.
– Não adianta me mostrar
nada disso que tá aí porque, pra mim, só tem a ‘bríbia’ que leio e sigo os
‘mandamento’ – retrucou o pregador de forma convicta.
– Pois então, não passe nada
dessa sua fé ridícula, que também não me interessa! – respondeu de forma
implacável, indo logo emendando e – aproveitando a raiva – partindo para o
baianês:
– Qualé a sua, maluco? Tá
pensando que alguém aqui é robô pra engolir pilha da sua ferramentagem! Se
saia, vá! Se pique logo daqui antes que eu lhe encha de sapeca-iaiá! – disse o
cabeludo já bastante injuriado e cuspindo cerveja quase nos pés do figura, como
forma de desprezo.
– É foda, mermo! Jurubeba
não pode nem tomar uma ‘breja’ na paz, que lá vem um tabaréu fudido com essa
‘parada de sucesso’ de igreja, religião... Tomar não quer ninguém caralho! – se
explicando agora voltado para nós dois e falando de si mesmo na terceira
pessoa.
Enquanto isso, o sujeito se afastou lentamente
após respirar fundo, ficou de costas para nós três e foi logo abrindo o Livro
Sagrado e pregando um versículo escolhido a dedo para a situação:
– ...E o Senhor falou: quando cruzares com um
inimigo em teu caminho, lembreis que minha palavra te livrareis do ímpio e blá
blá blá... – falou em voz alta, e visivelmente transtornado, para que todos ao
redor pudessem presenciar sua fé inabalável em meio a presença do forasteiro
profano.
Numa fração de segundos após começar a
pregação, Jurubeba se levantou, ficou em posição contrária ao seu novo desafeto
e começou a interpretar – com a voz gutural e bem alta, como manda o figurino
metálico – uma introdução de um clássico dos primórdios do metal brasileiro
(criada por um amigo banger ‘das antigas’, Angel, vocalista da histórica banda
de black/death metal Vulcano, oriunda de Santos/SP) e que, na mãos de nosso
folclórico amigo, se tornou um cartão de visitas na abertura dos inúmeros shows
que ele participou (a maioria, como penetra), saudando as hordas metálicas ao
microfone:
– Eu sou o Sexto Cavaleiro
do Apocalipse / Empunho em minhas mãos uma espada forjada em aço e fogo / Ergam
suas cabeças para que eu possa decepá-las / A dor não deve temer, pois vosso
sangue em minhas mãos eu vou beber / Pois, preciso de vossas almas para meu
pacto com Satã pagar / E de vosso sangue para eterno continuar / Pois está tudo
perto da total... Destruição! Yeeeââââââhhh!!!!!!!!! – com um berro de causar
inveja até num gorila enfurecido e repetido umas duas vezes mais.
Era o clímax do inusitado
encontro. Pessoas se aproximavam tanto no saguão quanto no andar acima, criando
o efeito de arena romana ou de uma praça grega em meio a um épico discurso ou
um embate entre lideranças opostas. Nesse momento eu já estava rolando de rir
no banco, quase desmaiando, pois já conhecia a inclinação do baiano para gerar
situações repletas de verborragias e expressões típicas da Terra de Todos os
Santos. O pobre Thiago tentava,
inutilmente, esconder a própria cara, cheia de vergonha que o impediu de
desfrutar do rápido duelo entre os dois presepeiros. Mas, algum tempo depois,
ele assumiu que se sentia um autêntico expectador das nostálgicas leituras de
cordéis ou numa disputa entre repentistas, tão comuns entre os mais velhos, em
meio às praças e feiras livres espalhadas por toda região nordestina.
O crente se assustou com as
monstruosidades vocais e o texto diabólico do roqueiro veterano; saiu andando
de forma apressada; continuou pregando o messias na cruz e olhando várias vezes
para trás, certamente com receio de não está sendo seguido pelo suposto
defensor de Satanás. Após essa mini guerra santa, é provável que o esforçado servo
do Senhor tenha pensando bilhões de vezes (mais uma expressão típica do
feirense louco) antes de abordar novamente algum sujeito cabeludo e tatuado,
com receio de ser mais um discípulo do tinhoso. E Jurus continua recusando
santinho e sempre com a máxima: “Se saia, maluco! Antes que eu lhe parta em
banda!”
Crônica escrita por Jailson Assis dos Santos, estudante de jornalismo e
colecionador de vinis.
3 comentários:
Jurubeba já se tornou uma figura emblemática da cena roqueira pessoense, em pouco mais de uma década que mora por aqui. Ele têm centenas de causos similares a este mas, infelizmente, só lembra das histórias em fragmentos com poucos nexos, por causa do alto teor etílico que envolve a maioria delas. Seria interessante que alguns amigos, presentes nas mirabolantes histórias, também enviassem relatos de suas aventuras com o "mau baiano". Espero que seja a primeira de muitas aqui em seu blog. Grande abraço e obrigado por divulgar o texto. "Estou lhe devendo uma comédia!", como diria seu conterrâneo louco. Valeu, Jesuíno! Abs, Jailson.
Caramba, muito bem escrito! A reprodução do jeito de falar baiano foi perfeita, rs
Deveriam entrevistas algumas das figuras daqui de Fortaleza e escrever posts como esse.
Rss
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