8 de jan. de 2013

A Voz da Razão.

O homem é um ser em eterno conflito. Nem os princípios filosóficos de Voltaire e nem as benesses do bem querer do pregador Paulo de Tarso fariam jus as querelas da humanidade. Também pudera, no cotidiano da vida moderna de uma cidade grande, tudo é (im)possível.

Veja bem, o sujeito passa o dia trabalhando e ao chegar a casa, no começo da noite, para o seu sagrado descanso, às vezes é interpelado pelo improvável, para não dizer incômodo. Moro num edifício com dezenas de moradores, local onde ainda existem casas na mesma rua e em especial um vizinho que gosta de bons sons. Mas ele é de lua, e quando esta começa a crescer, seus delírios musicais são postos à prova. Numa dessas belas noites, estava ele a escutar nas potentes caixas de som do carro, estacionado na garagem de casa, um clássico do rock intitulado “Band on the Run” (1973) da banda Wings do nobre Sir Paul McCartney. É obvio que a referida trilha sonora tem décadas de existência e não agrada em alguns ouvidos mais jovens. Entretanto o marco da discografia rock é conhecido modelo de composição pop e recomendado que seja executado em hora e local mais apropriados. Talvez isso gere um bom motivo para discussão, mas passo.


Entre o querer e o gostar há um enorme abismo que separa a tolerância e a paciência. O veterano morador reconhece para si uma e ignora dos outros a outra parte – aqui tomo a liberdade de prejulgar... E o referido clássico vai desfilando nas potentes e estridentes caixas seus compassos e solos de guitarras acachapantes, que chegam a beirar a irritação dos ignorantes do gênero e do descanso pacifico dos apreciadores. Ora, após um longo dia de trabalho ao chegar ao lar o pobre mortal só deseja o silêncio, o conforto e o carinho familiar. Mas o som automotivo teima em proclamar teimosos riffs de guitarras em condições nada apropriadas, mas isso é um mero detalhe técnico.

Confesso, que de minha morada, onde ouvia a plenitude do som vazado - também sou apreciador da música do Sir -, estava em agonia para reclamar o merecido descanso. Pensei comigo, daqui a pouco o veterano roqueiro baixa o facho e desliga o som, enquanto isso vou fechar as janelas para abafar o som e assistir a TV.

Saturando a paciência dos anjos, como uma sentença definitiva, eis que uma voz rompante, vinda não se sabe donde , bradou como representante de uma multidão (in)sensível dizendo:

- Desliga essa merda, porra!!!

Foi tão forte e incisiva que ecoou pela rua chegando aos ouvidos do patrocinador musical como uma bomba mortal. Pondo em cheque o merecimento da pérola rock e do nobre autor, que deve ter estremecido lá no Atlântico Norte.

- Desligo não! – a débil resposta do solitário e incompreendido roqueiro não surtiu efeito.

Até as forças harmoniosas da arte cederam ao desencanto do momento, descarregando a bateria do carro do patrocinador, que não teve outra saída a não ser empurrar o carro, recolher os copos e engavetar o disco. Ironicamente até a banda fugiu!

E eu aqui ainda a pensar diante da sensibilidade humana: o som é bom, mas a vida é dura. Assim caminha a humanidade...

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