16 de set. de 2014

DUELO DE CORDEL NA RODOVIÁRIA EM PLENO SÁBADO DE FOLIA

Sábado do Carnaval de 2004, começo da tarde no Centro de João Pessoa. Eu estava na loja de CDs em que trabalhava,aguardando chegar às 15h para voltar pra casa e pensar no que fazer em meio a folia que já predominava em toda parte. Já era umas duas e pouco da tarde e, comigo na loja, apenas um amigo de longa data, Thiago Mendes, que fazia Biologia na UFPB e, geralmente, aparecia aos sábados para conversar, sair pra beber vinho ou cerveja e – de vez em quando –, comprar algum produto da loja. Quando adentrou a loja nosso amigo de poucos meses e já enturmado com quase todos os frequentadores, o veterano metaleiro baiano Jurubeba (Wuldemberg Jr., seu verdadeiro nome) bem apreensivo, com uma mochila e uma bolsa de viagem e que foi logo intimando:

 – Tenho que viajar daqui a pouco para ‘Hellcife’ e encontrar a ‘baianada maluca’ la´de Feira (de Santana, sua cidade natal), que foi toda para o Carnaval de Rua que rola no Centro de Lá! Vamos lá, véio, me deixar na Rodoviária? – ele falou para nós dois. – Desmonte o ‘cacete armado’ que gente toma umas ‘cebrejas’ no caminho... – emendou, já se justificando e caprichando no ‘baianês’.

– Mas ainda não são 15:00 hs e estou sozinho na loja hoje! – expliquei com uma certa falta de interesse em sua farra. Até porque, tinha recém-acabado um namoro, não tinha planos (leia-se grana mesmo) e tenho pavor as festividades ligadas ao Rei Momo e Cia.

– É sábado de Carnaval, maluco! Ninguém mais vai aparecer por aqui. Bote fé! – ele de novo insistindo. – Pode fechar a birosca, dê um ‘zignau’ no trampo do Emerson (um dos donos) que a gente se ‘adverte’! Vá lá, dê uma providência que a hora tá correndo, meu veio! – voltando a falar e me perturbando.


– É mesmo, Jailson! Fecha a loja que a gente deixa ele na Rodoviária e toma umas latinhas pra ficar no grau! – era o Thiago, sem uma arruela furada no bolso e concordando com o cabeludo e tatuado amigo, companheiro de vários shows de heavy metal e outras curtições que já tinham participado. Além de também possuir raízes ligadas a terra dos orixás.

 A loja ficava nos arredores da Praça Dom Adauto (Praça do Bispo), eu entrei em acordo, passei a chave na loja e nós três saímos pela Av. Visconde de Pelotas, Ponto dos Cem Réis, Viaduto Damásio Franca e Rua do Comércio; sempre no sentido contrário aos carros e tomando umas latas de cerveja para aliviar o calor e ficar no clima da folia que tomava conta do país.

 Ele havia comprado a passagem das três horas no dia anterior. Porém, por causa de sua vagarosidade - e do cacoete de parar segurando em nosso braço pra enfatizar algum ‘causo’ de seu longo histórico de quase quatro décadas (na época) de presepadas –, chegamos depois da hora marcada e ele teve que trocar o bilhete pelo o das quatro horas da tarde. Sentamos no piso inferior quase em frente ao portão de embarque, continuando a beber e conversar abobrinha para passar o tempo.

Enquanto falava sobre a alegria de rever cada um dos amigos headbangers após vários anos sem pisar em sua terra natal, e do caos que é a capital pernambucana nessa época do ano; ele abriu um bolso lateral da mala e retirou vários fascículos de uma série chamada “Os Pensadores”, que seu pai havia comprado durante os anos 70. Eram umas revistas pequenas e bem finas e com títulos dedicados as grandes mentes que popularizaram o Conhecimento em escala global: Platão, Voltaire, Oscar Wilde, Vitor Hugo, Rousseau, Einstein, Nietzsche, Marx e alguns outros ilustres. O melhor ainda estava para acontecer...

Estávamos distraídos vendo sua coleção, levada exclusivamente por causa da viagem (lembrando que na época não havia Facebook, Twitter, WhatsApp, celulares com muitos recursos para se distrair, e ele sempre foi um cara inquieto, principalmente quando havia bebido) e ouvindo mais algumas de suas mirabolantes histórias, quando se aproximou um sujeito de uns trinta e poucos anos, vestido de forma composta, moreno e bem magro. Com uma Bíblia embaixo do braço e uma porção de ‘santinhos’ da Assembléia de Deus – se não falha minha memória –, distribuindo e falando algumas mensagens relacionadas a sua fé entre as pessoas presentes na estação. Quando chegou nossa vez, eu era o primeiro e o Jurubeba o último no banco do saguão.

– Meus irmãos, ‘aceite’ aqui a palavra do Senhor, pra que vocês ‘possa refretir’ nesse período de provação, de trevas por todo canto, sem o amor do Sr. Jesus e etc e tal... – falava o crente enquanto passava o santinho para mim e, em seguida, na mão do Thiago – que pegamos meio a contragosto, mas não falamos nada.

Ao chegar à vez do ‘mau’ baiano (que sempre falou que era ateu e odiava pregação de crente, e também pra manter seu status de ‘banger’ autêntico), ele não aceitou o folheto e foi logo questionando o conhecimento do crente:
 – Venha cá, meu rei, você já leu isso aqui? E esse aqui? E esse outro? – passando um a um os volumes da série e aborrecendo cada vez mais o evangélico.

– Não adianta me mostrar nada disso que tá aí porque, pra mim, só tem a ‘bríbia’ que leio e sigo os ‘mandamento’ – retrucou o pregador de forma convicta.

– Pois então, não passe nada dessa sua fé ridícula, que também não me interessa! – respondeu de forma implacável, indo logo emendando e – aproveitando a raiva – partindo para o baianês:

– Qualé a sua, maluco? Tá pensando que alguém aqui é robô pra engolir pilha da sua ferramentagem! Se saia, vá! Se pique logo daqui antes que eu lhe encha de sapeca-iaiá! – disse o cabeludo já bastante injuriado e cuspindo cerveja quase nos pés do figura, como forma de desprezo.

– É foda, mermo! Jurubeba não pode nem tomar uma ‘breja’ na paz, que lá vem um tabaréu fudido com essa ‘parada de sucesso’ de igreja, religião... Tomar não quer ninguém caralho! – se explicando agora voltado para nós dois e falando de si mesmo na terceira pessoa.

 Enquanto isso, o sujeito se afastou lentamente após respirar fundo, ficou de costas para nós três e foi logo abrindo o Livro Sagrado e pregando um versículo escolhido a dedo para a situação:

 – ...E o Senhor falou: quando cruzares com um inimigo em teu caminho, lembreis que minha palavra te livrareis do ímpio e blá blá blá... – falou em voz alta, e visivelmente transtornado, para que todos ao redor pudessem presenciar sua fé inabalável em meio a presença do forasteiro profano.

 Numa fração de segundos após começar a pregação, Jurubeba se levantou, ficou em posição contrária ao seu novo desafeto e começou a interpretar – com a voz gutural e bem alta, como manda o figurino metálico – uma introdução de um clássico dos primórdios do metal brasileiro (criada por um amigo banger ‘das antigas’, Angel, vocalista da histórica banda de black/death metal Vulcano, oriunda de Santos/SP) e que, na mãos de nosso folclórico amigo, se tornou um cartão de visitas na abertura dos inúmeros shows que ele participou (a maioria, como penetra), saudando as hordas metálicas ao microfone:

– Eu sou o Sexto Cavaleiro do Apocalipse / Empunho em minhas mãos uma espada forjada em aço e fogo / Ergam suas cabeças para que eu possa decepá-las / A dor não deve temer, pois vosso sangue em minhas mãos eu vou beber / Pois, preciso de vossas almas para meu pacto com Satã pagar / E de vosso sangue para eterno continuar / Pois está tudo perto da total... Destruição! Yeeeââââââhhh!!!!!!!!! – com um berro de causar inveja até num gorila enfurecido e repetido umas duas vezes mais.

Era o clímax do inusitado encontro. Pessoas se aproximavam tanto no saguão quanto no andar acima, criando o efeito de arena romana ou de uma praça grega em meio a um épico discurso ou um embate entre lideranças opostas. Nesse momento eu já estava rolando de rir no banco, quase desmaiando, pois já conhecia a inclinação do baiano para gerar situações repletas de verborragias e expressões típicas da Terra de Todos os Santos.  O pobre Thiago tentava, inutilmente, esconder a própria cara, cheia de vergonha que o impediu de desfrutar do rápido duelo entre os dois presepeiros. Mas, algum tempo depois, ele assumiu que se sentia um autêntico expectador das nostálgicas leituras de cordéis ou numa disputa entre repentistas, tão comuns entre os mais velhos, em meio às praças e feiras livres espalhadas por toda região nordestina.

O crente se assustou com as monstruosidades vocais e o texto diabólico do roqueiro veterano; saiu andando de forma apressada; continuou pregando o messias na cruz e olhando várias vezes para trás, certamente com receio de não está sendo seguido pelo suposto defensor de Satanás. Após essa mini guerra santa, é provável que o esforçado servo do Senhor tenha pensando bilhões de vezes (mais uma expressão típica do feirense louco) antes de abordar novamente algum sujeito cabeludo e tatuado, com receio de ser mais um discípulo do tinhoso. E Jurus continua recusando santinho e sempre com a máxima: “Se saia, maluco! Antes que eu lhe parta em banda!”


Crônica escrita por Jailson Assis dos Santos, estudante de jornalismo e colecionador de vinis.

3 comentários:

Anônimo disse...

Jurubeba já se tornou uma figura emblemática da cena roqueira pessoense, em pouco mais de uma década que mora por aqui. Ele têm centenas de causos similares a este mas, infelizmente, só lembra das histórias em fragmentos com poucos nexos, por causa do alto teor etílico que envolve a maioria delas. Seria interessante que alguns amigos, presentes nas mirabolantes histórias, também enviassem relatos de suas aventuras com o "mau baiano". Espero que seja a primeira de muitas aqui em seu blog. Grande abraço e obrigado por divulgar o texto. "Estou lhe devendo uma comédia!", como diria seu conterrâneo louco. Valeu, Jesuíno! Abs, Jailson.

adelvan disse...

Caramba, muito bem escrito! A reprodução do jeito de falar baiano foi perfeita, rs

Rossy disse...

Deveriam entrevistas algumas das figuras daqui de Fortaleza e escrever posts como esse.
Rss